segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Nos Tempos da Pandemia


           O fruto da pandemia se chama saudade. Foi inoculada em mim, de mim se nutriu, espalhou seus galhos, produziu flores pálidas com cheiro de morte. E frutos que à noite me causam terríveis e constantes pesadelos e de dia imensa saudade. Saudade doída, massacrante, destruidora, excruciante. Sangro constantemente. Não há nada que destrua essa praga antes que ela destrua a mim. Por mais que eu faça ela nunca vai embora, nunca consigo me livrar de sua aterradora presença invisível. Só precisava ver meus netos por alguns minutos para voltar a viver.

terça-feira, 19 de julho de 2022

Uma Das Vezes Em Que Morri


 Ocasionalmente um fantasma me acorda na madrugada e exige que eu o vomite em palavras. Sou filha única e como é natural, era emocionalmente muito ligada a meu pai. De repente ele adoeceu com câncer, detectado já em estado terminal. E eu morando muito longe, vivendo um inferno pessoal que só eu conhecia a profundidade. Consegui ir visitá-lo no hospital em Brasília e ele, inocente como uma criança, pediu para mim, aquela que ele julgava superior a todos os humanos, que o levasse para casa. Eu sabia que não podia fazê-lo, mas não pude dizer e nem mesmo demonstrar que eu mal conseguia manter a minha sanidade. Dias depois ele morreu e eu dissociei meu espírito. Uma Marta vivia como um robô, e quem olhasse de fora pensava que estava absolutamente serena. Mas eu não estava ali e inclusive tinha a nítida sensação que não andava; eu flutuava alguns centímetros acima do chão. A Marta verdadeira estava encolhida e escondida num lugar bem profundo, sem querer olhar para fora e encarar a realidade. Um mês depois eu estava internada na UTI do hospital Nove de Julho, para onde fui transferida de Cuiabá, com uma súbita pneumonia que evoluía vertiginosamente e não respondia aos mais modernos antibióticos. Só me lembro que nos poucos momentos em que ficava consciente eu me decepcionava por estar viva num mundo que para mim era o pior lugar possível, onde eu estava totalmente isolada com meu sofrimento. Mas a Dra. Marisa D'Agostino e equipe me trouxeram de volta e disseram a meu marido que eu simplesmente não queria viver. Sobrevivi, mas grande parte de mim não resistiu. Foi nessa ocasião que morri mais um pouco, sem funeral, trancada no meu completo silêncio.

sábado, 2 de julho de 2022

Bélgica

 Quando criancinha ganhei uma cachorra perdigueira à qual dei o nome de Bélgica. Eu vivia numa fazenda onde a amizade de uma menininha solitária e uma doce cachorrinha cresceu com muita força e nos tornamos inseparáveis. Meu amor por ela enchia meu mundo de alegria, até que aos sete anos meus pais resolveram me colocar num colégio interno. Minha primeira preocupação foi como me separar da Bélgica e quem cuidaria dela. Minha mãe afirmou que tudo ficaria bem e que quando eu voltasse para as férias ela estaria me esperando. Mas não estava. Cheguei chamando por ela e ela não apareceu. Ao ver meu desespero meu pai me disse que tinha colégio de gente e colégio de cachorro; que Bélgica estava aprendendo muitas coisas, mas logo chegaria. Eu esperava ansiosa, quando um dia chegou um amigo de meu pai e começaram a conversar sem saber que eu estava ouvindo. De repente ele comentou que a perdigueira que tinha ganhado de meu pai era excelente caçadora. Um gelo cobriu minha alma e nesse dia descobri que não podia confiar nos adultos. Me calei e nunca mais perguntei por Bélgica; mas nunca a esqueci e até adulta eu acordava chorando, porque sonhava que me via na beirada de uma cratera enorme e totalmente escura, onde escutava o latido de minha cachorra. Eu entrava e não enxergava nada diante de mim, tal era a escuridão. Mas escutava o latido e saía tateando, correndo, caindo e gritando o nome dela e nunca a alcançava. Já fazem alguns anos que não sonho mais, talvez porque meu espírito tenha desistido, talvez porque pesadelos maiores substituíram aquele.


 

segunda-feira, 25 de abril de 2022

O menino e o gato

Da janela de meu quarto via uma varanda mais abaixo num prédio vizinho e percebi um dia um garotinho bem pequeno brincando com um gatinho. Eu achava lindo e sempre observava os dois, uma "voyeuse" sem maldade, encantada com a amizade dos dois. Um dia percebi que menininho estava adolescendo e o gatinho com ele. Depois menininho esticou como por mágica e virou um rapaz bem alto. Sempre com o gato no colo ou ao lado. Acostumei-me tanto com menininho, que demorei a perceber que ele andava malhando e tinha-se tornado um rapaz forte, mas para mim continuava o "menininho". Nesses anos todos nunca soube o nome dele, até que um dia os dois sumiram. Desconfio que menininho casou e levou seu amigo de infância. Criei esse final feliz em minha cabeça, porque desenvolvi uma afeição por ele e seu gato e preferi pensar assim. Agora, depois de tanto tempo, acredito que o gato amarelo já tenha ido para o paraíso dos gatos e menininho tenha sofrido muito. Ainda bem que não vi essa parte.
 

terça-feira, 29 de março de 2022

Efeitos da Pandemia


 Hoje os dias passam céleres e nem mais se identificam. Esquecem-se de que já são tantos, que não mais os reconheço. Não sei  de aniversários e perdas, de qual é mais ou menos marcante. Daqueles que trouxeram alegrias, dos tantos que só foram lamentos. Dos dias agora só me restou uma certeza: deixaram de ser um a mais para serem um a menos.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Diferenças do Brasil e outras culturas


Chegando em Havana (Cuba) e ansiosa para conhecer a cidade, desci e perguntei ao porteiro se deveria levar o passaporte ou uma cópia comigo. Isso pensando também na possibilidade de roubarem o meu documento. O rapaz olhou-me com estranheza e perguntou por que eu queria levar o passaporte e relatei a possibilidade de ser abordada pela polícia e ter que me identificar. Ele então, com um meio sorriso me perguntou se eu estava pretendendo cometer algum crime. Diante de minha veemente negativa disse que a policia jamais me submeteria ao constrangimento de ser abordada se não estivesse em flagrante delito, pois os direitos do cidadão tinham que ser respeitados. Passei quinze maravilhosos dias andando sem lenço nem documento e sem nenhuma preocupação em ser assaltada.