quarta-feira, 22 de julho de 2020

Uma das vezes em que morri


Ocasionalmente um fantasma me acorda na madrugada e exige que eu o vomite em palavras. Sou filha única e como é natural, era muito ligada emocionalmente a meu pai. De repente ele adoeceu com câncer, detectado já em estado terminal. E eu morando muito longe, vivendo um inferno pessoal que só eu conhecia a profundidade. Consegui ir visitá-lo em Brasília e ele, inocente como uma criança, pediu para aquela que ele julgava superior a todos os humanos, que o salvasse. Eu sabia que não podia fazê-lo, mas não pude dizer e nem mesmo demonstrar que eu mal conseguia manter a minha sanidade. Dias depois ele morreu e eu dissociei meu espírito. Uma Marta vivia como um robô, e quem olhasse de fora pensava que estava absolutamente serena. Mas eu não estava ali e inclusive tinha a nítida sensação que não andava, eu flutuava alguns centímetros acima do chão. A Marta verdadeira estava encolhida e escondida num lugar bem profundo, sem querer olhar para fora e encarar a realidade. Um mês depois eu estava internada na UTI do hospital Nove de Julho, para onde fui transferida de Cuiabá, com uma súbita pneumonia que evoluía vertiginosamente e não respondia aos mais modernos antibióticos. Só me lembro que nos poucos momentos em que ficava consciente eu me decepcionava por estar viva num mundo que para mim era o pior lugar possível, onde eu estava totalmente isolada com meu sofrimento. Mas os médicos me trouxeram de volta e disseram a meu marido que eu simplesmente não queria viver. Sobrevivi, mas grande parte de mim não resistiu. Foi nessa ocasião que morri mais um pouco, sem funeral, trancada no meu completo silêncio.