sábado, 3 de dezembro de 2011

O Santo Remédio


Eu tenho uma amiga que viveu o inferno. E o que é pior, sózinha, escondendo dos outros, chorando em casa e sorrindo em público. Criou um mundo fictício, onde tudo era perfeito. Um dia começou a notar que estava indo muito ao banheiro fazer xixi. Achou que fosse temporário e esperou, pois seus outros problemas eram muito maiores. Mas essa frequência foi aumentando e nela havia tanta urgência, que se minha amiga não fosse ao banheiro imediatamente, faria nas roupas. Começou a anotar a diminuição de espaço entre as micções e elas chegavam ao máximo de uma hora de intervalo; o normal era de meia em meia hora, ininterruptamente, dia e noite. Ela já não conseguia dormir direito, já não saia para lugares que ficassem a mais de quinze minutos de casa, não ia ao cinema, ao teatro, nem mesmo à casa de amigos pela vergonha de ficar indo ao banheiro todo o tempo. Muitas vezes passava a noite deitada no chão do banheiro, pois era mais fácil. A maior parte dessas noites chorando, porque além de todos os demais sofrimentos, já havia passado por um batalhão de médicos, feito todos os tipos de exames possíveis e nada era detectado; e todos a dispensavam dizendo que ela não tinha nada e ninguém a orientou para que procurasse um psiquiatra ou psicólogo, nem ela conseguia fazer essa associação. Um dia um urologista recitou um remédio para dormir, esperando que com isso ela tivesse pelo menos algum tempo a mais de sono. Resultou que a situação ficou pior, pois aumentou o sono e não diminuiu a necessidade de ir ao banheiro. Numa noite de desespero, ela pegou um antidepressivo/ansiolítico do marido, um desses mais conhecidos no mercado e tomou. Isso foi pouco depois da meia noite. Foi ficando com sono e resolveu arriscar ir para a cama. Quando acordou, eram mais de seis horas da manhã. Foi invadida por uma euforia tão grande que correu para o médico e explicou o acontecido. Ele deu-lhe uma receita e como milagre o problema se resolveu, depois de mais de dez anos. Ela continua tomando o remédio, porque quando interrompe, tudo volta. E por duas vezes já passou por uma situação delicada. Quando o marido ultrapassava os limites usuais de sadismo, sem perceber ela fazia xixi involuntáriamente, mesmo que estivesse em público. Agora que o casamento acabou, não voltou a acontecer. Talvez um dia ela possa até suspender o santo remédio. Ou talvez nunca, porque certos traumas nunca se vão.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Eu, Marta Jackson

Últimamente tenho descoberto muitas coisas sobre mim. Agora descobri que sou branca. OK, pensam que estou brincando? não, é sério. Minha mãe costumava me chamar de mulata, principalmente quando estava me repreendendo. E não sei que mecanismo mental fez com que eu acreditasse que isso era verdade. Tal como as anoréxicas, eu me olhava e "via" uma pele escura. Passei a vida comprando coisas baseada na minha cor fictícia. Dizia para as vendedoras que tal cor não ficava bem para pessoas escuras como eu e não percebia que o riso delas era uma adesão ao que elas pensavam ser uma brincadeira. Outras ficavam irritadas e eu não notava que achavam que eu estava escarnecendo da cor delas, pois eu nos achava da mesma cor. Recentemente acordei, porque pela primeira vez resolvi comprar uma base para o rosto, coisa que eu nunca havia usado. Cheguei na loja, fui direto ao setor e usando a parte interna do punho, escolhi uma base bem escura. Uma vendedora se aproximou e perguntou se eu estava comprando para outra pessoa e quando respondi que era para mim, ela fez cara de espanto e falou que eu jamais poderia usar aquela cor, pois era muito clarinha. Ri, achando que ela brincava comigo, quando ela escolheu outra e aplicou no meu antebraço. Surpresa, percebi que ficou perfeita. Nesse instante foi como se uma luz se acendesse e pela primeira vez eu me enxerguei tal qual eu sou. Ainda estou me acostumando com minha vida de branca, dando alguns foras, como hoje ao pedir a uma vendedora um short amarelo "porque nós os negros gostamos muito de amarelo" e vendo o sorriso amarelo dela. Não sei explicar esse fenômeno, porque não sou psicóloga, mas posso garantir que é verdadeiro.